O QUE O QUADRO DA SUA AVÓ TEM A VER COM LITERATURA? - edição 07: agosto de 2023
As pessoas que escreveram para essa edição, provando que são genuínas crianças dos anos 90/2000, também se deixaram levar por imagens e deram voz aos seus pensamentos mais profundos.
Editorial: O QUE O QUADRO DA SUA AVÓ TEM A VER COM LITERATURA?
Por Maurylia Loureiro
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As crianças dos anos 90 e 2000 tiveram contato com objetos aparentemente universais em todas as casas brasileiras durante esse período: espelho laranja, filtro de barro, capas desconfortáveis de sofá, enciclopédias, frutas de plástico, quadros de paisagens... Os programas de televisão eram caóticos. Banheira do Gugu, 20 Fingers cantando Short Dick Man no programa da Xuxa, a Tiazinha de lingerie, máscara e chicote castigando homens no Caldeirão do Hulk.
Ainda antes da popularização da internet, as crianças se viam numa luta constante por entretenimento. Os programas caóticos da TV não as cativavam por muito tempo, as brincadeiras na rua acabavam logo que a mãe chamava para casa, e nem as músicas da Xuxa tocadas ao contrário para invocar demônios adiantava. Mais cedo ou mais tarde o sentimento de tédio dominava a criançada.
Sem ter mais o que fazer, restava apenas ficar parada em frente àquele quadro esquisito que passava de parente para parente. Sempre apresentava uma paisagem bonita, com várias árvores e flores de diferentes cores, uma estreita trilha e uma casa ao fundo. Em alguns quadros, uma pequena garota se juntava à paisagem, caminhando despreocupada e nunca chegando a lugar nenhum.
E era aí que a magia acontecia.
A imaginação fluía e transportava aquela criança entediada para um mundo novo e que implorava para ser explorado. Já dentro do quadro, era fácil se perder entre as árvores, cheirar as flores, brincar com a menina solitária e acompanhá-la até aquela casa no fim do caminho. Quem morava lá? Será que a casa tinha passagens secretas?
Imersas, quase hipnotizadas, as crianças eram tiradas da suave alucinação por uma voz adulta: “o que tá fazendo parado em pé aí? Eu, hein!”. Mas não importava, em algum outro momento de tédio profundo, aquele quadro abraçaria novamente a imaginação de quem se deixasse levar por ele.
As pessoas que escreveram para essa edição do Escrevendo pelas beiradas, provando que são genuínas crianças dos anos 90/2000, também se deixaram levar por imagens e deram voz aos seus pensamentos mais profundos.
O desafio desse mês foi criar textos em formato livre sobre alguma das imagens que a organizadora Anna Carolina Ribeiro trouxe para os participantes do coletivo Margem. Assim como os quadros esquisitos da infância, as imagens não tinham contexto. Coube à pessoa participante interpretar e criar sua narrativa da maneira que desejasse.
Logo abaixo você pode conferir os textos selecionados para compor essa edição.
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Edição 07: Agosto de 2023
Revisão de Maurylia Loureiro e organização de Anna Carolina Ribeiro
PANÓPTICO
Construíram um filho de deus gigante, lá no alto da cidade. Foi pra lembrar que a gente escapa dos nossos por perto, mas não da culpa de estar sendo vigiado. Importante lembrar: a imagem foi feita de crenças, ferro, cimento, mais concreto e indestrutível que os outros filhos de deus. Maior que todos, o preferido que ressuscita no terceiro dia enquanto a gente fica aqui, morrendo em vida pra viver no final. O filho de deus foi feito pra vigiar, de braços abertos pra impor tamanho e pra sombrear nosso caminho de luz. Fizeram um filho de deus pra ninguém alcançar, diferente da gente que transforma a água da vida em vinho e multiplica pães como dá.
Rasga, Cristo, rasga negro, arrasta Bangu
Rasga,
Rasga o olhar na construção.
De braços abertos espera,
A multidão
Soldador vem?
Burro também.
Cansado do busão lotado.
Vem, subindo,
Num derrapar devagar,
Cai sem levantar o olhar.
Entre cimentos
Arregaça, mistura argamassa,
Mãos e nãos
Furiosas, Furadas, Fissuradas, Fraturadas
Construção
Nem pedra sabão.
Nem solução de…
Sol, solução
Mistura, tritura, espalha, encalha.
Junta tudo,
Ferro,
Ferrado,
Esfarrapado,
Espera deitado.
Cada passo dado é prego avantajado.
Sai de lado com carga de burro e…
Cheio de cimento, espera o Cristo crescer.
Abraços de sombra e…
Já tá grande!
Não caí do alto da ribanceira,
Não é ribanceira, é morro
Corcovado,
Enlatado.
Espremido,
Sonhos e
Barro, muito barro,
Espera,
Espreme mais esse aí!
Leva para longe que…
Não pagou
Bilhete,
Não pode ver
O Cristo aberto.
Seu peito esconde,
Seu braço,
Esculpe o Coração aí,
De lado,
Desse jeito?
Não daquele lado, escondido.
Espreme, aí, o sangue,
Espreme, mais um pouco.
Falta mão,
Não falta não,
Só falta empurrão.
De braços abertos, Espera.
Não, levantado
O Cristo?
Não!
O negrão é cravejado.
Espera camburão,
Não pagou bilhete.
E…
Arrasta Bangu.
Rasga, rasga o olhar na construção.
O que achou dos textos? Deixe comentários para os escritores!
Em agosto continuamos nossos estudos sobre poesia na oficina “Figuras Poéticas”, ministrada por Anna Carolina Ribeiro. Acompanhe nosso perfil no instagram para saber mais informações: algumas das nossas oficinas são abertas para todes!
Também demos início ao nosso Projeto Pausa Poética. Queremos espalhar poesia por aí com uma zine de uma página só, que qualquer pessoa pode imprimir, dobrar, cortar e montar. A ideia é que cada pessoa monte algumas e distribua por aí, para que mais pessoas possam ter pausas poéticas nos seus dias. Instruções e zine para impressão e leitura aqui neste link.
Até o próximo mês!