EDITORIAL: Impressões
Por Anna Carolina Ribeiro
Quando ofereço aulas e oficinas sobre poesia, costumo falar que poeta não é só quem se expressa, mas é principalmente quem se impressiona com o mundo.
No latim, impressĭo - termo que dá origem à palavra que hoje usamos no português - significa a ação de marcar por pressão. Já a palavra expressar vem de exprimĕre, que significa espremer, representar, exprimir, enunciar claramente. Logo, o segundo processo - o de enunciar - só pode acontecer se a pessoa que escreve o poema tiver antes sido marcada por algo que a toca.
Para espremer o poema pra fora do poeta, existem diversos (re)cursos e técnicas. Há até uma preocupação excessiva com a forma como o poema será escrito. Há, no entanto, pouca preocupação com o que se tem a ser dito, até porque a poesia é um gênero literário que se baseia na liberdade de temas, assim como também pode ser livre nas formas, que aprendemos a liberar com os tantos cursos, aulas e oficinas que vemos por aí. Porém, não dizer a importância das impressões para a criação do poema pode deixar poetas iniciantes sem rumo no caminho da escrita.
Sim, você pode escrever sobre tudo, mas precisa se deixar marcar por aquilo antes.

É preciso sensibilizar os sentidos de poetas, para que vejam possibilidade de escrita em tudo e todas as coisas. Este é um aprendizado do dia-a-dia, um treino constante para que possamos escanear o mundo e enxergar através dele a poesia oculta em toda a matéria existente.
A proposta de escrita feita este mês para o Coletivo Margem consistia em treinar esse olhar de poeta com os textos mais banais e aparentemente despidos de poesia possíveis: bula de remédio, panfleto de supermercado, recibo de compras. O exercício consistia em sensibilizar o olhar e enxergar poesia nas palavras técnicas, cotidianas, comerciais, e agora você lê as marcas dessas palavras ordinárias em seus respectivos poetas.
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Edição 03 (Abril/2025)
Organização de Anna Carolina Ribeiro e revisão de Claudia Felix.
MEU CABELO ACONTECE - Nayara Oliveira tinha de haver uma receita um truque mãos mágicas que pudessem, sem dor alinhar as curvas do meu cabelo desanelar. tornar liso, reto, escorregadio e então poder soltá-lo sem risos ou olhares mexê-lo, amarrar alto rabo de cavalo um coque fazer uma franja eu gostaria um cabelo liso livre de piadas que depois de lavado secaria ao sol, no calor sem medo apontamentos. não temeria o volume sacudiria os fios gritaria deixaria que tocassem que admirassem meu cabelo liso. sem raízes pronto pra fotos visitas e festas esquinas, ônibus igreja, padaria. eu não sofreria falaria abertamente sobre cabelo indicaria produtos, fórmulas cabeleireiros e me manteria nas conversas certa de que ninguém tramava disparates. o meu cabelo não incomodaria as colegas na escola cessariam bucha, assolan, bombril as lojas se fartariam frasco e rótulo e eu exibiria com gosto as linhas retilíneas do meu cabelo. apostariam em meu futuro um azul promissor oceânico sem os danos que me impeliram mas tem que molhar, marrar guardar. se possível, esconder. mas eu sonhara queria pode ser sem o peso de negar a mim, minha origem meus traços minha raiz sem a contramão de preferir o outro a mim descartar um vocabulário que abre fendas à prova de tampas rolhas, capas, portas uma parte danifica-se porque o desejo que impera é o branco casto e puro que diz cuide-se e estampa no rótulo alegrias e promessas um falso prazer que vez em quando me espia, me acende e reporta-me num tempo úmido em que respirar doía e eu acreditava na tv num mundo sem espaço apertado, ofegante, duro ditando as regras altivo e claro sobre quais partes de mim eu teria que escolher. * REMÉDIO PARA A VIDA ADULTA - Niara Adultos têm sérios efeitos colaterais abusos dependências costumam apresentar problemas no coração acreditar em coisas que não são reais Mas tem remédio seja paciente Cada cápsula dura contém um crepúsculo estimulante entre o amarelo e o azul brilhante indicado no tratamento que consiste em apreciar a vista e esquecer-se dos transtornos por um instante * O GRÃO - Thamires Bonifácio sementes escuras no prato do ninho mineral como água e vinho filé vegetal em endereços sombrios tateiam o labirinto cacau ELA procura a saída no expresso oriente assassino e apesar da oferta a vida continua fracionada em sólido abrigo castanhas adubam lágrimas cremosas açúcar manteiga tapa buracos infindos sachês de ânimo!!! mas a prata gasta ainda guarda o ouro sangue que pulsa forte entre caixas pulmões há humor congelado hábitos antigos caem infinitos como formigas famintas em montanhas líquidas de ração seca antes era pessoa agora só resta uma vesícula e depois uma vírgula e depois? o ciclo recomeça nasce o grão dá-se o nome matam o grão acendem a fome e abafam o GRITO * ÂNSIA - Thalyn Sgobbi Às 3h48 da manhã os olhos de Pandora se escancaram. Ela coloca as mãos sobre a boca e se levanta, alarmada. Corre num impulso em direção ao banheiro, mas o vômito quente e viscoso é expelido violentamente de sua boca antes mesmo que ela chegue na porta. A desintegração de algo pútrido em ácido ralo e amarelo, queimando a sua garganta como lava fervente. Seu gato, a única outra alma presente naquele recinto, desce da cama e se aproxima com cautela para cheirar o quimo descartado. Ele começa a lamber. Se sentindo impotente e cansada, a menina apenas encara a substância disforme que se expande vagarosamente no chão do seu quarto. Com as mãos ainda úmidas, ela esfrega seu queixo numa tentativa falha de limpar os resíduos. Pandora está contorcendo-se para alcançar a sua bolsa no banco de trás. Um grande semáforo adiante manifesta a ordem silenciosa de que o trânsito se acalme. O tranco da parada faz com que a garota finalmente alcance o celular que procurava. — Bolacha? — a sua mãe oferece, ainda com os olhos focados no movimento de carros à frente. Pandora apenas rejeita a oferta num aceno rápido e tateia a tela debilmente. — Você emagreceu esses dias. Têm conseguido comer no trabalho? — Eu tento. — o breve momento de calmaria termina, o som de buzinas e motores voltam a ecoar ao fundo. — Sabe... — os dedos da mulher batucam o volante, inquietos. — Talvez seja bom você ir ver um médico. — Pra eles me passarem mais uma caralhada de exame que no final não vai dar em nada de novo? — a menina cospe, ríspida, e depois se arrepende. — É só um mal-estar, mãe. Eles falaram que vai passar... O carro vira a esquina. Pandora se apoia na janela, olhando para fora. Seus olhos se fixam no retrovisor e algo a encara de volta. Um rosto magro, de um amarelo pálido, com olhos fundos e desfocados. Ela leva as mãos à boca em choque e confusão, mas logo as retira ao sentir um fedor podre e ácido subindo até suas narinas. O mesmo odor de um pedaço de carne quando é deixado por meses no fundo de uma geladeira qualquer. O reflexo seguiu perfeitamente todos os seus movimentos e só então Pandora se deu conta de que era ela ali. A menina lança um olhar distante ao para-brisa. — Eu vou tentar voltar lá no sábado. Vasculharam seu corpo com máquinas, furaram suas finas veias com agulhas, mas nada parecia ir fundo o suficiente para arrancar o mal que a afligia. Em Pandora havia essa necessidade constante de expurgação. O sentimento, comprimido em seu âmago, ansiava transformar-se em vômito. A garota decidiu se acostumar àquela perda. Três dias depois, porém, algo chamou a sua atenção. No caminho corriqueiro para o trabalho, a padaria que frequentava desde criança exibia uma exuberante nova sobremesa: um bolo de chocolate acompanhado de um pote de geleia caseira sabor morango. Tal como o seu avô costumava fazer. De repente em Pandora manifesta-se uma palpitação. Batimentos irregulares demonstram uma insuficiência tamanha do seu coração em acompanhar a tão profunda emoção. Mas o estômago de Pandora logo começa a revirar, fazendo com que a ansiedade tome o seu lugar. E ela deixa que a agitação a engula, enquanto ela simula no terreno fértil da sua imaginação todos os motivos pelos quais ela deve dizer não. Desde então, todos os dias ela luta para reduzir esse efeito geral que toma conta da sua alma. Ela tenta manter a calma e segue em frente, criando vozes inibidoras para assassinar as indutoras que a levam para a vitrine novamente. Afinal, se a dor é mais intensa que o prazer, então não há mais nada que a garota possa fazer. Pandora só não contava que, em certo dia inesperado, o elevador estaria quebrado. — Era só o que me faltava. — sussurrou para si mesma. — Não se preocupa, vira e mexe ele faz isso. — a senhora ao seu lado riu fraco. — E tinha gente me esperando. Logo eles vão ver que eu sumi e vão nos ajudar. Estavam apenas as duas presas lá dentro. A senhora, faxineira que trabalhava há anos na empresa, era uma desconhecida que Pandora sempre achara estranha. — Ótimo. — A menina disse sem muito entusiasmo e pegou o seu celular. — Até porque eu tô sem sinal pra avisar o time de vendas... — Você parece tensa, garotinha. Quer falar sobre o que aconteceu? — A faxineira ofereceu com uma voz calma e doce. Os músculos de Pandora se enrijeceram na mesma hora. — Sabe, às vezes tudo o que precisamos é um ombro amigo. Por algum motivo ela sentiu verdade naquelas palavras. E, por mais que quisesse, não havia lugar nenhum para o qual correr. A garota se viu relaxando os braços e apoiando-se na parede às suas costas. — Eu só... não ando conseguindo comer nada. Tudo o meu corpo rejeita. Eu tento de novo e de novo, mas não adianta! Sempre acaba dando errado... — Mas você já sabe o porquê disso ter acontecido? — Eu acho que foi um erro meu também. Eu acho que sempre fui muito afobada e colocava tudo pra dentro muito rápido. Eu só engolia como se fosse sumir da minha frente, sabe? — Pandora se sentou no chão do elevador. A senhora fez o mesmo, apoiando-se nas paredes para conseguir se sentar. — A minha mãe me avisou. Tava tudo bem na minha cara pra que eu soubesse. Esse tipo de coisa nunca vem do nada. Tem sinais. Era só eu perceber a merda dos sinais. — E por que você não percebeu então? — Na verdade não, eu percebi. Mas eu escolhi ignorar eles. E agora eu tô aqui. — A senhora respirou fundo e começou a fitar o teto. — Mas eu não vou mais cometer esse erro! Eu tô bem atenta agora, não chego perto de nada que eu não tenha total certeza que não vai me fazer mal. — E você já achou? Alguma coisa que com certeza não vai te fazer mal? — Não... — Pandora cruzou os braços. — Tudo, quando eu me aproximo, tem um problema. Sempre tem um defeito. Aí eu prefiro nem arriscar. Melhor ficar do jeito que eu tô. Pelo menos eu sei que eu não vou passar mal de novo depois… — E é isso mesmo que você quer pro resto da sua vida? Às vezes eu acho que não tem nada melhor do que experimentar algo novo! — Ela olhou para Pandora. — Você vai querer perder essa oportunidade toda vez? — Na verdade, não... Mas vai ser horrível ter que lidar com as consequências depois. Ter que botar tudo pra fora… — É horrível mesmo. Mas isso só significa que você já teve alguma coisa aí dentro em primeiro lugar. E, garota, a parte que for boa a gente leva com a gente a vida toda, viu? As portas se abriram com um deslize. Pandora se viu congelada enquanto sua mente era contaminada com a doce dose de um risco calculado prestes a ser tomado. Finalmente ela pediu a sobremesa. O prato foi colocado sem demora sobre a mesa. As suas papilas, antes secas, se encheram d’água. Ela pegou o pote de geleia. A calda brilhava numa instabilidade deslumbrante enquanto caía, espessa e convidativa, em cima do pedaço de bolo. Suas cores pareciam ser as mais vívidas que a garota havia visto há meses. O cheiro inebriante alcançava as suas narinas, doce e com um toque cítrico. O bolo, fofo e macio, despedaçava-se com a mínima força aplicada. Ela hesitou por um segundo, mas trouxe a colher até a sua boca. O açúcar da calda abraçava sua língua completamente, espalhando-se mais a cada vez que mastigava. A massa do bolo morno derretia na boca, com um leve amargor que neutralizava o excesso de doçura. Acabou muito rápido. Ela pegou outra colherada. Seus olhos estavam marejados, suas bochechas coradas. Ela se sentia completamente bem. Mas mesmo que não se sentisse, ela percebeu que teria valido a pena.
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Abril foi um mês movimentado: tivemos uma oficina de escrita sobre Prosa poética e Fluxo de Consciência com S.S. Maisa e mais um encontro do Clube de Escrita do Coletivo Margem na Biblioteca Municipal de São João del Rei. Além disso, tivemos mais dois encontros do Clube do Livro do Coletivo Margem.
Falando no clube, em encontros quinzenais, o “E eu não sou uma escritora?” apresenta escritoras pioneiras do Brasil cujas obras e importâncias foram apagadas pela história. A historiadora Ana Luiza Mendes modera os debates dos dias 17 e 31 de maio, que acontecem às 14h. Todos os livros do clube estão em domínio público e disponíveis para download legal e gratuito. Você paga R$ 20 por mês, mas recebe desconto pela inscrição para um pacote de 6 meses. Em maio vamos ler Lésbia, de Maria Benedita Bormann! Quer ler com a gente? Clica aqui!
Na virada de abril para maio, fizemos a segunda edição do #LerÉColetivo, em colaboração com os coletivos Escreviventes e Escribas. O evento foi um sucesso: mais de 79 obras gratuitas ou em promoção, milhares de downloads e centenas de vendas e agora a gente quer ler com vocês os livros baixados. Até 11/06 vai rolar a #MaratonaLerÉColetivo2025 e suas resenhas VALEM PRÊMIOS! O regulamento já está disponível aqui.
Nos lemos por aí!
Amei essa edição, foi realmente muito inesperado!