a margem da folha - edição 01: fevereiro 2023
Notas sobre os limites e apresentação de algumas integrantes.
EDITORIAL: a margem da folha
Por Anna Carolina Ribeiro
Não sei por que razão, nem como - e talvez essa seja uma história para se resgatar futuramente, antes que o passado a devore - aprendi a ler e escrever antes da idade escolar indicada. No segundo período, eu já lia, arriscava alguns garranchos das letras de forma e em pouco tempo eu já identificava e me preparava para as “letrinhas de mão-dada”. E desde então, quiseram delimitar a minha escrita.
Tenho uma lembrança distorcida da professora - e não a culpo porque não sei exatamente porque ela interveio daquela maneira, mas posso imaginar - que disse a meus pais que eu não podia escrever em letras cursivas ainda. Que eu não deveria nem estar escrevendo. Acho que sugeriram me adiantar, mas minha mãe diz que não achava uma boa ideia, porque eu podia ter maturidade pra escrever mas não pra muitas outras coisas. Meus pais não deram muita importância ao pedido, mas eu diminui minha capacidade de juntas letras pra formar palavras e pra não destoar muito dos colegas.
Mais tarde, na idade na qual a alfabetização avançava um pouco mais, as letras cursivas eram ensinadas aos colegas mas eu já as dominava, sem mesmo ter passado pelos cadernos de caligrafia. Não eram riscos lá muito bonitos, mas dava pra distinguir os moldes, e era aquilo que deveria importar. Mas insistiam pra escrever com capricho e elogiavam letras mais belas. Eu ficava um pouco triste, sempre fui um pouco vaidosa pra estética, embora sem um senso ou capacidade de execução muito apurados. Mas eu também não ligava tanto assim, porque afinal, as crianças, desde aquela época, tinham coisas muito mais importantes a fazer como brincar, assistir Chiquititas e ouvir as músicas novas de Sandy & Junior.
Naquele ano, onde o foco seria treinar a perfeição da cursiva, eu havia começado a estudar em um colégio particular, onde fiquei desde os 7 anos até me formar no ensino médio. A primeira tarefa, no entanto, era para os responsáveis (o que se traduzia muitas vezes em “para as mães”): marcar em vermelho as margens do caderno e, a cada três linhas, marcar um x. Nossas caligrafias experimentais não podiam passar da linha vermelha e só poderíamos deixar o corpo das letras em linhas onde o x estava. Acima e abaixo da pauta marcada por eles, só as alças e pernas do alfabeto cursivo.
Essa forma de nos manter contidos tem função didática, eu entendo. Não dá pra se desprender totalmente das normas quando se convivem em uma sociedade. Ela precisa nos limitar para funcionar. E, enquanto indivíduo social, não tem jeito, é preciso se sujeitar a pelo menos alguns dos limites, por escolha ou não - e muitas vezes não é por escolha consciente.
Trago a memória da margem do caderno e da menina que não podia escrever antes da hora porque são exemplos ligados de certa forma à escrita. Quantas outras margens nos contém ao longo da vida? E elas são para nosso bem? Ou para o bem de uma estrutura social que nem sempre nos contempla?
Muitos aprendizados, entendimentos, modos de existir e agir podem surgir quando as margens são outras. Para quem seremos estrangeiros, se cruzarmos as fronteiras que nos limitam? E o que acontece quando não temos limites? Descobrir até onde podemos ir no território desconhecido pode ser uma aventura, e abrir as fronteiras pode ser libertador.
É por isso que estamos escrevendo pelas beiradas, para que as margens - e o centro - sejam outras, e, se possível, completamente transponíveis para quem deseja circular livremente, em especial nesse campo que deveria ser muito mais livre da arte.
“Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”
Cecília Meireles
Sonhamos com a inexistência de margens. Mas precisamos sonhar de forma concreta. Um sonho que se sonha só, é só um sonho. Um sonho que se sonha junto é realidade. Foi isso que disse Raul Seixas. E é nisso que acreditei para criar este coletivo.
Quando idealizei o Coletivo Margem, eu tinha um público específico com quem queria compartilhar o sonho, porque saberiam o que é estar à margem, como eu sempre estive, mesmo sem enxergar nitidamente as linhas vermelhas que não deveria cruzar ou os símbolos de x indicando onde era permitido eu riscar minhas letras. Quero me juntar a quem queira se arriscar em busca de uma liberdade de criação e exposição que nos é negada. Quem precisa se arriscar para atravessar uma fronteira, sabe que está à margem da sociedade, e nosso coletivo busca olhar para esses rabiscos e caligrafias das beiradas. O que já está no centro recebe atenção demais, então nós iremos iluminar nossas novas estradas que ainda estamos construindo: as marginais que nos levarão ao centro.
Esta primeira edição do Escrevendo pelas beiradas é uma apresentação do Coletivo Margem e traz também os primeiros textos de alguns de nossos autores. E que forma melhor de apresentar escritories do que lendo escritos que os representem? Eles foram compartilhados entre nós na nossa primeira oficina de escrita. A ideia é continuar mensalmente com propostas para estimular a escrita e trocar comentários que nos ajudem a desenvolver nossa expressão através da palavra. Algumas pessoas quiseram compartilhar seus textos por aqui, e foi assim que nasceu essa primeira edição do Escrevendo pelas beiradas, uma publicação do Coletivo Margem.
Que seu primeiro olhar para o que está escrito na beiradinha da folha te revele toda uma outra forma de existir, do outro lado da margem.
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Edição 01: Fevereiro 2023
segundo platão
gosto de fechar os olhos e pensar você.penso em quando você tira a roupa. não pra mim, pro banho, ou pro descanso. gosto de pensar que muitas pessoas veem o corpo que eu amo. algumas podem ter visto despido. mas talvez nenhuma delas tenha visto esse corpo cansado do trabalho, se jogando no sofá frustrado, entrando na cozinha com fome procurando comida na geladeira. despido das roupas e do máximo das inibições e ainda se expressando no máximo da sua honestidade? só eu vi. só eu testemunhei esse corpo febril e carente, querendo colo mas não querendo admitir. nem sua mãe viu isso, e você já esteve dentro do ventre dela. talvez vocês reconheçam as entranhas um do outro, mas só eu reconheço a criança que ainda mora da sua pele pra dentro.
gosto de pensar que as pessoas que tocaram seu corpo descobriram como você gosta do arrepio que dá quando suas orelhas recebem o calor de uma boca, a dureza dos dentes, a umidade da saliva. mas só eu - só eu - vejo elas sem as argolas prateadas que você usa pra enfeitar. só eu te vejo antes do sono, antes, durante e depois dos sonhos. gosto de imaginar que sou a única pessoa que conhece esse segredo e tantos outros, que muitos sentimentos seus, só eu sei.
de olhos fechados, sorrio.
gosto de imaginar você.
gosto tanto de você. da ideia de intimidade sendo essa visão que só eu tenho e, em troca, posso deixar você ver algo de mim que ninguém mais viu. gosto tanto de você.
você nem imagina o quanto.
você nem imagina.
mas eu imagino. tudo isso é ideia. seu corpo é um universo inteiro que eu desconheço, e no qual nunca pude me expandir. a nossa intimidade vive nesse mundo, de ideias perfeitas, onde também habita a relação que não temos. onde habita você, em carne e ossos da minha projeção. seu corpo despido em toda sua perfeição imaculada não está neste mundo, em que me habituei a estar. de tudo que penso, só o que fica de concreto são as argolas dos brincos. que nunca tocaram orelhas como as suas.
gosto muito de pensar. gosto de imaginar você.
Anna Carolina Ribeiro é poeta e escritora formada em letras pela UFSJ e colaboradora do site Valkírias. É autora da newsletter annaverso e idealizadora do Coletivo Margem. Tem livros, contos e poesias avulsas publicadas em diversos meios e formatos.
Menina Relva
Era uma vez uma menina que se entendia com as plantas. Entendia-se mesmo, de falar a língua e tudo. O nome dela era Relva. Ela era espontânea e bem independente. Tinha a pele morena como tronco de árvore. Quando se embrenhava no mato, seus cabelos cacheados ficavam verdes como as folhas. Se ficava muito feliz, até brotava flor no cabelo dela. E quando queria se esconder, pisava descalça na terra e transformava-se totalmente em árvore.
Ela e a mata se entendiam cada dia mais, como se fossem a mesma coisa. Mas nem sempre foi assim. Isso aconteceu na época em que a mãe dela, Moema, ensinou-lhe a cuidar de planta. Mostrou suas belezas, o jeito que queriam ser tratadas e ensinou a respeitá-las. Mainha, como Relva a chamava, sempre dizia:
— A gente rega de manhãzinha ou de tardezinha, com o sol fraquinho, senão faz mal. E na hora de cuidar, as plantinhas gostam de conversa. Tem que dar bom dia, perguntar como estão e pedir licença para mexer nelas.
Uma vez, regando o jardim, Relva notou uma plantinha gorduchinha e cheia de pontinha. Ainda por cima tinha umas florzinhas na cabeça que mais pareciam um chapéu. Mas quando foi tocá-la a menina se machucou, desatando a chorar.
Mainha vendo aquilo, calmamente retirou os espinhos de suas pequenas mãozinhas, abraçou a filha até que ela se acalmasse e depois recomendou: — Essa aqui não encosta nela que ela não aceita! O corpinho espinhento dela machuca o seu dedinho. A gente precisa respeitar os limites dos outros e esse é o dela. É assim que ela se protege.
— Desculpe, amiguinha! Achei você tão linda que quis fazer carinho. disse Relva à plantinha.
— Ela sente o carinho na voz e na presença da gente. Não precisa tocar, minha florzinha. Coloca ela no sol, que ela gosta. E rega uma vez na semana que tá bom. Quando você tiver maiorzinha eu te ensino a fazer mudinhas e mostro um jeito seguro pra você pegar nelas. Ainda é cedo, uma coisa de cada vez… Disse Moema.
E a menina ajudava mainha toda vez como podia. Relva sentia tanto amor, mas tanto amor naquela lida, até que um dia, no quintal de sua casa, Relva chegou e disse: — Bom dia, plantinhas!
E uma planta respondeu: — Bom dia, minha querida!
Porque Relva virou também um pouco planta. Ela deu um salto e gritou: — Uai, que é isso!? E no susto seu cabelo ficou verde.
Quem respondeu foi uma mudinha de espada-de-são-Jorge, criança ainda, como ela, que mainha tinha dado pra ela cuidar.
— Acho que vocês vão se dar muito bem! Você é capaz de cuidar bem dela. Disse a mãe quando lhe confiou o vasinho. Mas voltemos à plantinha falante…
— Menina Relva, não tenha medo! Eu sou Sãozinha, continuo a mesma que você conhece.
— Papai do céu, sou eu a Relva!... Suplicou a criança ajoelhada e com as mãozinhas juntas.
— A gente aqui do quintal gosta muito de você! Você respeita a gente e nos trata com muito carinho. disse Sãozinha.
— Humm… tá bem! E a criança aproximou-se um pouco.
— Mainha disse que vocês protegem a nossa casa, é verdade? Perguntou Relva.
— É sim e também podemos te proteger. Sempre que você tiver em perigo é só me chamar. Corre a mão espalmada pra frente, apontando pro chão e fala "vem, Sãozinha!" com muita fé, que vai brotar um monte de mim no caminho que você fizer e coisa ruim não vai passar.
Mas Relva, já muito esperta nos seus seis aninhos questionou:
— Uai, mas você é planta, como que você vai sair daí? E... Ahhn... como é que você fala?
— Amor é força que cria e que dá jeito! O amor que a gente sente faz a ponte pra gente se aproximar. E quando a gente fala com amor é mais fácil de se entender. Respondeu Sãozinha.
— Como que você sabe de tantas coisas? Relva perguntou.
— Plantas são sábias. Quem para pra escutar a vida acontecendo aprende muito. Disse Sãozinha.
— Ha-ha-ha! Você é engraçada! Disse Relva achando graça, espantada das coisas como são, daquele jeito que criança sabe bem.
E elas riam e contavam casos uma pra outra. Tornaram-se melhores amigas. A menina ficava tão feliz no quintal que de seus cabelos, por hora verdes, brotavam até flores.
Mainha agora deixava Relva brincar no quintal sozinha porque tinha a Sãozinha, que era de confiança, para protegê-la.
Num desses fins de semana ensolarados, Relva brincava de esconde-esconde na pracinha com seus amiguinhos enquanto seus pais batiam papo por ali. Enquanto procurava um esconderijo, ela pisou num montinho de lixo e de lá saiu correndo uma enorme aranha e um monte de aranhas pequeninas.
Relva deu um salto pra trás e começou a correr, mas tropeçou numa raiz exposta de árvore e caiu no chão. Foi quando se lembrou de sua amiga. Fez um círculo e chamou por Sãozinha. E por onde passou a mão cresceu uma cerca viva bem alta de espada-de-são-jorge. Assim, ela ficou protegida das aranhas, que quase a alcançaram.
E Sãozinha disse: — você precisa ir embora, dona aranha! Mas ela respondeu: — É o quê!? Num calor desses, o montinho é o que a gente tem de sombra e de refresco aqui. Não tenho pra onde ir não, dona! Tenho filho pra criar! Eu conheço meus direitos!
Entendendo seu desespero, Sãozinha prometeu que arrumaria outra casinha para elas, desde que elas não atacassem ninguém ali.
— Chame sua mãe, menina Relva. Ela saberá o que fazer.
O círculo se desfez, deixando ainda alguns poucos brotos plantados ali e a menina correu até sua mãe, contando-lhe o que aconteceu. Rapidamente, mainha passou a mão numa vasilha que tinham usado para levar o lanche e foi em direção às aranhas. Cobriu-as com a vasilha e tampou, fazendo ainda uns furinhos com uma faca para que pudessem respirar.
A criançada que olhava apavorada para aquela cena começou a gritar e a bater palmas.
Relva abraçou a mãe aliviada e perguntou: — O que você vai fazer com elas, mainha?
— Vamos levá-las pro mato mais próximo, que deve ser de onde saíram. Quando voltar, vamos todos limpar a pracinha para que o lixo não atraia outros bichinhos perigosos. Você fez bem em chamar um adulto, minha filha!
E assim foi, mas não parou por aí. À medida que Relva conhecia outras plantas e passeava pelas matas e serras, elas se entendiam e Relva tornava-se cada vez mais parte da natureza.
Niara Rocha de Aguiar é mineira, cria do Vale do Jequitinhonha. Mora em SJDR, onde graduou-se em Filosofia e em Ciências Biológicas pela UFSJ. Sua (in)experiência com a escrita vem da urgência de escrever para "tirar as coisas da cabeça".
Já não posso ser amanhã
Essa gente medrosa, manhosa, maldosa
com suas pieguices, autopiedades,
pessimismos insuportáveis
que diz que tem medo de falar
mas, na verdade, não fala porque não sabe
Desconfio de quem diz que a vida é ruim
e a mastiga como uma goma grudando
nas frestas do dente porque tem nojo do sabor
a vida exige muito pouco da gente
ela só diz: viva! O controle, egoísmo
e expectativas que geram dores
Essa gente calada, que não dão a cara a tapa
morrem de medo de morrer, mas não de não viver
empurram os dias com a barriga e depois se perguntam
porque não chegaram a lugar algum
não percebem suas manobras repetitivas
estão sempre em busca do tempo,
templo perdido, chorando pecados
a outros pecadores
que Deus não liga, ele nos fez como queria
Gosto de incomodar, desagradar, transgredir
podem me difamar o quanto quiserem
mas jamais dirão, em um minuto sequer,
que menti sobre quem era, só consigo ser eu
e ninguém mais, mesmo que mude depois
quando lágrimas chegam
digo: “e daí?”
o segredo não é permanecer em pé
é saber cair, sou forte demais para fingir não sentir
Você poderia quebrar minhas pernas
mas ainda assim eu não me curvaria
pois, crio asas pra me levantar
poderia atentar contra o meu coração
ele não é de ferro, é de carne, molinho
sangra, mas uma hora se regenera
a minha força está em cada nervo da sensibilidade
não espero o tempo melhorar
gosto da chuva e a deixo molhar
Já tive vergonha do meu nome,
“Maria é nome de mulher comum” — diziam
pois me dei ao luxo de ser a mulher mais comum que já conheci na vida
você me verá em muitos lugares, bares e pares
por que sou como todas? Talvez, mas principalmente
porque não me limito em momento algum
tenho muitas caras, ações, faço tudo e mais um pouco
Escrever é meu processo de cura
adoeço na mudez
tenho necessidade de falar, falar e falar
quando não falo, a garganta inflama
dizem que é doença do corpo,
digo que é doença da alma
antes de ser escritora, precisei corrigir minha biografia,
pois não havia um livro sequer disposto a conhecer minha história
quando me ensinaram o alfabeto vi que tinha
o mundo todo nas mãos
Já não posso ser amanhã, tenho fome de agora
se num minuto resisto, num instante explodo
sempre tento e quando encontro a tecla certa bato até quebrar
vou comigo até o fim da linha
sou muitas, em poucas estou
já não lembro mais quem eu era
não me cobre pelo ontem
sou inconstante, incontrolável e
inocente dos personagens que já fui
porque jamais me releio, escrevo e jogo fora
outros personagens e histórias sempre virão.
Maria Gabriela Cardoso é uma escritora gaúcha que transita entre os contos, poesias, crônicas e novelas com o pseudônimo Lua Pinkhasovna. É membro do Coletivo Escreviventes e idealizadora do Coletivo literário Escribas.
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Em fevereiro, fizemos nossa primeira oficina especial aberta para o público. A Oficina de Zines com Laila Zin foi um encontro online que estimulou nossa criatividade e trouxe muito incentivo pra essa publicação alternativa e originalmente marginal - como nós, do Coletivo Margem. Compartilhamos alguns registros por aqui. Fique de olho no nosso instagram para saber das próximas oficinas abertas ao público!
Se você for de São João del Rei ou quiser nos fazer uma visita, estamos planejando a nossa participação na Feira da Boa Zona. Aguardem a programação, porque vamos expor nossos zines e livros no último fim de semana do mês nessa feira que já é tradicional na Rua da Cachaça. Venha prestigiar nossa Banca Literária!
E em março também teremos um encontrinho presencial que será também um sarau. Aguardem mais informações e novidades!
Até o mês que vem!
Que texto poderoso! Dá pra ver a força ali...
amei amei amei