A CRIAÇÃO É ATIVA - edição 05: junho de 2023
Quando a palavra criatividade é dividida em duas, se apresentam significados que podem construir um outro entendimento dela mesma.
Editorial: A CRIAÇÃO É ATIVA
Por Anna Carolina Ribeiro
Quando a palavra criatividade é dividida em duas, se apresentam significados que podem construir um outro entendimento dela mesma. Criar é uma ação que desencadeia o processo de surgimento de algo novo. É um esforço ativo dedicar tempo a algo, perceber por quais motivos cumpre sua função original e enxergar além para conceber outras formas de interagir com o que antes não nos servia ou nos servia de forma diferente.
Muito além da inteligência, a criatividade é uma qualidade que necessita de exercícios para se fortalecer. É preciso lubrificar e apurar o olhar; ser uma pessoa criativa requer quebra de expectativas e compreensões, para que se possa enxergar as possibilidades de ação para criar algo novo.
Os textos a seguir são exercícios de escrita criativa por três motivos.
O primeiro motivo para considerar, no geral, todas as atividades mensais de escrita do Coletivo Margem como criativas é que são exercícios para estudar a técnica; para conhecê-la tão bem a ponto de se enxergar mais formas de usá-la livremente e, possivelmente, de modo diferente do que qualquer outra pessoa no mundo faria. Já que cada indivíduo é único, o modo como vêem o mundo e o transformam também é, então, apesar da mesma proposta, textos distintos surgem a partir do entendimento, interpretação e ação de cada integrante que se dispõe a escrever.
O segundo motivo é que escrever seguindo propostas é um exercício ativo de criação. Não é a voz do anjo que sussurra no ouvido a inspiração para escrever. Não há anjo para invocar quando alguém propõe a escrita. O texto é um milagre que só pode ser feito com as próprias mãos.
Por fim, o terceiro é que especialmente no mês de junho, a proposta era pensar em um objeto dando a ele funções e entendimentos novos, através da escrita em verso ou da prosa. Como resultado do desafio, os anjos-autores nos trouxeram pequenos milagres, bem distintos em forma, tema, trama, mas igualmente criativos.
Que a leitura transforme ativamente quem lê e crie algo único em cada pessoa que recebe estes frutos de criatividade.
Boa leitura!
Edição 05: Junho de 2023
Revisão de Ana Luiza Mendes e organização de Anna Carolina Ribeiro
Cadeado e chave
Foi em um de seus sonhos mais vívidos que Nicole trocou seu coração por um cadeado. No sonho, a sombra de um homem ofereceu trocar seu coração, cheio de desesperos e anseios, por um cadeado. Cansada de todas as suas decepções, ela aceitou. Ela ainda recebeu avisos de que, um dia, talvez aparecesse alguém com uma chave e essa pessoa abriria seu coração novamente.
Nicole já estava em seus trinta e poucos, já tinha sofrido todos os tipos de dores possíveis. Manter seu coração trancado como um cadeado, para ela, só traria benefícios. E se esse alguém com a chave um dia aparecesse, ela poderia escolher ficar ou simplesmente se manter fechada.
Nicole escolheu ser enfermeira. Isso significava que em sua vida as horas de trabalho eram muitas e os encontros com a morte diários. Filha única de mãe solteira perdeu sua família antes que pudesse fazer adições. Ela não tinha muitas amigas, eram mais colegas de trabalho. E sua vida amorosa era cheia de desilusões e abandonos.
Os dias passavam um após o outro, e seu coração ter se transformado em um cadeado não fez a mínima diferença em sua rotina. Ela sentia, mas não se abria da mesma forma, o que apenas significava que sentia um pouco menos. Nicole esperava sentir menos ainda com esse acordo.
Em dois anos Nicole sentia pouco. Mas em uma noite, quando saiu para beber com os colegas de trabalho, conheceu Daniel. Ela não sabia o que era, mas ele causava um impacto tão grande que tudo ficava diferente perto dele. Era como se ela estivesse sob algum encanto.
Eles trocaram contatos e se encontraram algumas vezes. Daniel fazia tudo parecer mais leve e tranquilo. Nicole sentia que podia contar tudo pra ele, ela compartilhava suas inseguranças, seus dias cansativos no trabalho, seus sonhos e ambições.
Daniel se mostrava muito interessado em Nicole, mas demandava alguns ajustes. Ele queria que a mulher começasse a se cuidar mais, usar roupas mais bonitas, ir ao salão arrumar o cabelo e as unhas, fazer exercícios. Ele afirmava que essas pequenas mudanças, desconfortáveis para Nicole, seriam benéficas para ela.
Ele também ajustou algumas coisas na casa de Nicole, decorações que ele não gostava, momentos da rotina dela que para ele não pareciam certos. E por último, pediu para que ela tentasse trocar de emprego. Sair do hospital e tentar uma clínica ou talvez ser cuidadora, para ter mais tempo com ele.
Nicole tinha acabado de receber um e-mail sobre uma entrevista de emprego, um que não queria. Ela sentiu ansiedade. Um de seus pacientes havia falecido. Ela sentiu tristeza. Voltando para casa, ela sentiu desconforto com as roupas que Daniel mandou ela vestir. Mas ela não sentiu como imaginou que sentiria.
Em um confronto com seu namorado ela descobriu que sim, ele era a chave e faltava muito pouco para abrir Nicole. Mas para ele se encaixar perfeitamente, ela deveria fazer alguns ajustes em sua fechadura.
O relacionamento dos dois terminou, é claro. E Nicole aprendeu que, mesmo se fechando e se isolando, mesmo tendo um cadeado como coração, ainda vão ter pessoas que vão tentar forçar sua fechadura. Tentar ajustar a um molde e quando não der certo, ir embora.
Talvez se ela tivesse escolhido um código secreto…
Marcas do passado
Entrei na sala de trabalho e ele estava ali parado sobre a almofada e parecia dormir um sono de morte, no entanto, de justo mesmo não tinha nada.
Esperava o primeiro necessitado, o que me fazia pensar.
Como assim, ali parado o dia todo como se não existisse mais nada no mundo.
Quando ocorriam eventos ou situações que fugissem ao dito normal, lá estava ele esperando um novo papel para contrabandear a marca.
Houve um tempo que nem ligava para toda aquela inércia, mas hoje, hoje não dá mais.
Me recuso a aceitar essa situação, veja bem, quando surgia serviço para fazer algo até bonito, necessário.
Ficava ali esperando o barro para fazer seu trabalho, vinham várias placas prontas para serem marcadas.
Olho o retrospecto disso tudo, creio eu que o bendito era requisitado e infelizmente servia para marcar muito mais que papel, barro, placas e outras coisas estranhas que vou dizer se não me faltar tinta.
Até lembro de um dia em que o vi ali na pele de minha bisavó, grudado não com tinta, mas com fogo vivo, reverberando dentro de si toda dor e somente percebi quando perguntei a ela.
— Bisa, o que é isso aí no seu ombro?—
Minha bisa é uma velhinha e se não me falha a memória tinha uns 106 anos de idade, cabelo branquinho feito algodão ralo que o vento leva numa bufada escondida entre a brisa e a ventania.
Ela olhou-me bem nos olhos, apertou meu queixo com a mão franzina, rugosa pela idade e puxou forte, não que ela tivesse força.
Entretanto, aquilo doeu um pouco e quase chorei, mas antes de abrir o berreiro, recebi dela um beijo rugoso na testa.
Retribuí o beijo com um abraço bem apertado. Seu sorriso ainda está gravado em minha mente apesar dela vaguear entre o sonho e a lucidez.
— Filha, isso é a marca do Brasil!— disse com o mesmo olhar aquoso, batido pelo tempo.
Mas ainda tinha um brilho especial e fiquei ali esperando ela concluir, depois de um tempo marcado com sua respiração, ela continuou.
— Teve um tempo que se marcava pessoas com um carimbo todo especial, feito nas brasas do fogo, era uma marca cobiçada e quando nasci, a mainha me segurou e sinhozinho veio e marcou.
— Abri berreiro e levei várias palmadas que viraram calos calados pelo tempo na colheita. — os olhos levantaram como se quisessem apagar da vista a imagem teimosa do passado e continuou.
— Era propriedade dele. Onde morávamos a lei estava atrasada e a mula quando vinha era festa. — suspirou e misturou tudo com suas lágrimas e eu criança só queria saber mais e mais.
— Mas bisa, não tinha ninguém lá pela senhora? — eu pequeno que era não sabia o quanto essa frase calou fundo n’alma dela.
Era fim de tarde e nossa visita já iria acabar, abracei-a forte, como se abraçasse minhas bonecas e mamãe ia vir me buscar.
— Sabe, bisa, isso é igual a um carimbo do serviço de mamãe, lá tem um monte de carimbos, eles usam nos papéis.— sorria para ela, mas não teve sorriso de volta, somente um leve suspiro e as águas saiam em abundância de seus olhos.
— Quando era pequena feito você, já catava algodão e feijão na plantação, nosso carimbo era essa marca, queimada na brasa do ferro incandescente, que marcou até o coração.
— Minha mainha foi vendida e marcada com outro carimbo e eu por ser criança ainda dava sangue na fazenda e fiquei até seu bisavô me roubar e fugimos para a cidade grande onde a lei tinha validade.
— O bisavô tinha carimbo e te marcou? — a curiosidade da criança era grande, ela ficou ali esperando eu terminar e suspirou antes de responder.
— Vamos, vamos. — mamãe chegou e foi logo abraçando, beijando minha bisa. — Dei mais alguns beijos nela e nos despedimos.
Depois daquele dia, não gostava mais de brincar com carimbos no serviço de mamãe e quando via um tinha vontade de quebrar.
Sobre a simultaneidade das coisas
Marina estava sentada junto à escrivaninha do escritório onde trabalhava, em frente ao computador. Com sua típica cara de tédio, olhava fixamente para a tela. Trazia o cenho franzido e na mão uma caneta, que deslizava entre seus dedos longos, fazendo-a passar de um a outro, de cima para baixo e de baixo para cima, como se acostumara a treinar com as baquetas, para melhorar seu desempenho de percussionista. Tinha coisas importantes a fazer mas, por enquanto, isso era a única coisa que conseguia colocar em prática, como um estímulo ou uma recompensa.
Era assim que evocava inspiração, fazendo outra coisa. Perdera a conta de quantas vezes foi repreendida por essas e outras “manias”, como se as pessoas tivessem que sempre chamá-la de volta à realidade e afastá-la de suas “distrações inúteis”, como diziam.
O que muitos não sabem e, até pouco tempo nem ela sabia, é a simultaneidade das coisas que a mantém engajada no presente, pois dentro de si, há muito delas para serem atendidas. Naquele momento havia aquela que a instruía, a que narrava sua situação, a que duvidava de que ela seria capaz, a que queria um lanchinho e que batia papo com a que viu o último episódio de sua série preferida, além da outra, que as criticava todas.
- Ok, a inspiração chegou. Pensou com seus botões. Hora de negociar com as vozes na sua cabeça, como aprendera em terapia.
Agora ela precisava de ambas as mãos para redigir seu ofício. Abocanhou a caneta, era hora de trabalhar. Repassou o trabalho para seus pés, que fariam a trilha sonora sapateada que embalaria os seus escritos. Assim abafava todos os sons internos e mantinha sua motivação. Não seria assim mais divertido? Desafiara-se a manter o ritmo enquanto digitava o documento. Seus colegas, que agora olhavam de canto de olho para seus pés, pareciam discordar.
Esquecera-se de que não estava sozinha. Envergonhada pelos olhares, sossegou seus pés, colocou seus fones de ouvido e iniciou uma música no celular. Terminara a tarefa, finalmente. Começava e terminava outras enquanto atendia seu “público interno” exigente. Hora do almoço. Seguiram todos para a cantina. Sentia-se já muito cansada e se perguntava o porquê. Naquele momento, a que critica avisou-lhe: - Ei, sonsa! Sua colega te fez uma pergunta...
Nódulo na tireóide
um choro preso na garganta
ora seco
ora molhado
ora alvo
ora cinzas
um choro preso na garganta
rola o rosto
ora embola
ora desembola
ora cisma
ora pede calma
um choro preso na garganta
era 2020
agora
todo ano
exames de imagem
e um choro preso na garganta
quero atirá-lo longe
a doutora não deixa
domingo passado
esgarçada
quis eliminá-lo
mas sei
que para ser humana
é preciso ter
um choro preso na garganta
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Em junho, fizemos uma oficina com Fernanda Rodrigues, escritora, professora de escrita e autora do blog Algumas Observações. Desvendando o mercado editorial brasileiro: um olhar prático foi a primeira atividade ministrada por uma pessoa que não integra o Margem, graças ao caixa do Coletivo que estamos abastecendo com as colaborações que cobramos pelas oficinas e atividades. Além de remunerar oficineiros, financiamos nosso desenvolvimento na escrita - como essa oficina - assim. Agradecemos a todas as pessoas que se engajam nas nossas propostas pelo apoio!
E por falar em propostas, entramos em clima junino e fizemos um correio poético, onde muita poesia circulou entre amades e amantes. Pra ver os poemas lindos que emocionaram, visite nosso instagram! Estamos reestruturando nosso Clube de Leitura Marginália, então fique de olho na nossa rede social para saber as novas datas e livros que serão debatidos. Em julho, faremos mais uma oficina para desenvolver a escrita e é na nossa conta do instagram que iremos anunciar tema, datas e valores!
Até lá!
Muito legal, leitura q se encaixa na vida de muitas pessoas.